sexta-feira, 8 de julho de 2011

OS PASTORES





A sua memória oscilava como naqueles dias chuvosos, enegrecidos pela forma e pelo conteúdo. O dia, quando vestido assim, torna-se apenas um espaço usado pelas máscaras das nuvens com seus lençóis escuros. Assim era a vida daquele homem: um corpo que carregava um ser ausente de si mesmo; ausente do que fora capaz outrora; ausente do seu habitat.

Sinuosos meandros percorriam os rios de sua alma, a ponto de procurar-se a si mesmo e irritando-se por não se encontrar. Não lograva êxito nessas buscas, porquanto a cada dia se via ainda mais perdido. Era uma busca penosa e dolorida, especialmente para os que o assistiam e assistiam-no permanentemente nesse ir e vir da ausência.
Os desvãos de sua memória se tornavam cada vez mais largos, feito àquelas rachaduras deixadas pelos abalos sísmicos, á medida que ia em frente naquela busca desenfreada e cruel. Qual terá sido o seu abalo sísmico, perceptível apenas por ele mesmo, e que terá deixado marcas tão profundas? Nunca saberemos, a menos que entrássemos por aqueles desvãos como um garimpeiro em busca de ouro.

Certo domingo de manhã fora à igreja. Curiosamente, louvava a Deus que o criara, que o salvara, de uma forma tão grandiosa que poucos criam tratar-se de um desmemoriado. Não pelo louvar em si, mas pela forma de faze-lo, pois cantava hinos, cujas letras vinham e voltavam como água límpida de um rio calmo e sereno, como se se tratasse de uma memória de anjo. Alternava, contudo, para momentos surpreendentemente inusitados, como naquele em que, ao ler o boletim dominical com a ordem do culto, deparou-se com o nome do pregador daquela manhã e ficou muito surpreso e disse para que todos ao seu redor ouvissem:



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Como pode constar aqui o meu nome como pregador se não fui sequer convidado?

O nome era exatamente igual ao seu. Homônimos há às pencas por todos os lugares como sabemos. O problema, todavia, não estava na homonomia, mas no fato de o pregador daquela manhã ser o seu próprio filho! Sim, seu filho júnior, também pastor de reconhecida notoriedade, embora não o fosse mais pelo seu próprio pai ausente, não obstante estivem ambos ali sob o mesmo teto daquele templo.


Naquele mesmo dia, o filho fora se hospedar na casa de seu pai e não sabia o que o aguardava. Eis que aquele homem, tristemente, comunicava-o de que tinha um filho com o seu nome e que era também pastor noutra cidade. Um homem de Deus, dizia-lhe, de quem muito se orgulhava, no sentido mais terno da palavra de um pai presente. O filho, conquanto já se acostumando com aquela situação, típica de um filme de Buñuel, tinha vontade de sumir como uma bolha de sabão ao vento. Pensava se aquilo não poderia ser hereditário, reiniciando o drama com os seus próprios filhos um dia. Quisesse Deus que não. Que sua memória pudesse florescer como a de seu pai em áureos tempos e a sua agora.

Seu pai, na verdade, pela graça de Deus, viveu por mais algum tempo, tropeçando em suas lembranças, feito uma criança em seus brinquedos, alegre e feliz, satisfeito por ter alguém com quem pudesse compartir a sua história fantástica de que tinha um filho pastor com o seu próprio nome. 

Juscelino V. Mendes




Sobre a obra

Após ouvir de meu amigo Fausto Aguiar de Vasconcelos, teólogo de oratória ímpar, e exegeta de primeira, sobre o fim da vida de seu pai, que perdera a memória, escrevi em sua homenagem este singelo conto-poético.

Um comentário:

Graça Pereira disse...

Um conto belo cheio de poesia...como todos, corremos rios de memória, de lembranças, de tempos...para nos encontrarmos...Acontecerá? Possívelmente, um dia, na foz do rio!
Bjs
Graça