
"Então me mostrou o rio da água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, em ambas as margens do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês. E as folhas da árvore são para a cura das nações. Ali nunca mais haverá maldição. Nela estará o trono de Deus e do Cordeiro, e os seus servos o servirão, e verão a sua face, e na sua testa estará o seu nome. Ali não haverá mais noite. Não necessitarão de luz de lâmpada, nem da luz do sol, pois o Senhor Deus os iluminará. E reinarão para todo o sempre." (Apocalipse 22: 1-5)
Percorro o meu interior
E me vejo nu como um yanomami.
Ando pelas encostas do meu ser
e vejo claramente as florestas
largas e repletas de árvores fortes e floridas;
largas e repletas de frutos maduros;
largas e repletas de plantas verdes.
Ando em meio às árvores e não percebo o bosque.
Em meio aos frutos e não posso comer;
em meio às plantas e não sinto o seu aroma.
Caminho em direção ao rio que vejo ao longe;
rio que tem curso calmo.
Às vezes suas águas, que nunca são as mesmas,
descem velozmente ao encontro de um mar,
que é só meu, único e indescritível.
Impenetrável.
Ando ao encontro desse rio, cujas águas são azuis,
e chego exausto e trêmulo.
Nele, molho a minh’alma que se encanta e se enleva,
e chego a perceber o bosque: imenso e úmido.
Ouço o cantar dos pássaros!
E como dos frutos das árvores próximas: maduros e doces, que me são permitidos comer!
E sinto o aroma das plantas adjacentes: perfume silvestre.
Cheiro suave!
Sigo atravessando o rio e não desejo chegar.
As suas margens ainda estão largas,
mas se estreitam à medida que caminho:
a passos lentos e firmes...inseguros às vezes.
Não desejo ainda chegar.
As suas águas continuam a bater nas encostas do meu ser.
Volto-me a mim e reconstituo o caminho de volta.
Deixo para trás um rio lento e suave a caminho do mar, que não consigo enxergar, ainda que o veja: não estou mais nu, não me conheço.
Continuo, contudo, um yanomami.
Juscelino V. Mendes
Compus este poema em uma noite de verão em Salvador. Senti-me solitário e triste em um quarto de hotel. Dei-me conta de que uma dia morreria; que a morte estava mais próxima a cada dia vivido. Senti-me, não obstante a fé e segurança em Deus, um quase nada humano diante daquela realidade imutável. À medida que compunha o poema, meus pensamentos retornavam ao presente da vida e me tornava mais forte. Senti-me um Yanomami livre de quaisquer amarras, e, ao mesmo tempo, vestido para a civilização, um "ser-no-mundo" existencial, no sentido em que Matin Heidegger usa em "Ser e Tempo". O poema saiu de chofre e o dediquei a um dos grandes poetas do Ceará e à sua obra então publicada "Psi, a Penúltima", que eu lera horas antes e que muito me inspirara.
Este poema foi objeto de concurso em Portugal e selecionado para publicação com outros poetas portuguêses. As fotografias foram tomadas no ano de 1971, quando os índios Yanomamis eram isolados e muito pouco aculturados. PESQUISA REALIZADA NOS ÍNDIOS YANOMAMIS APÔIO PROJETO RONDON [www.cleber.com.br/fotoyano.html].