segunda-feira, 2 de abril de 2012

Carmélia...




Carmélia gostava de ler Mann, Machado, Bandeira, Baudelaire, Schopenhauer, Cervantes, Sartre, Epicuro e, por incrível que pareça, até Nabokov. Isto não é nada normal tratando-se de uma adolescente, e que podia estar nas rodas de amiguinhos falando amenidades que jamais seriam objeto das escritas desses estranhos escritores. Lia-os, devorava-os como se degustasse um sorvete de nozes, com aquele seu gosto característico de embasbacar uma criança em dia de sol. 


Os poucos amigos tentavam compreender o seu gosto estranho de horas a fio com um livro daqueles nas mãos, em seu mundo particular. Alguns adultos, considerados normais, temiam-na na mais ínfima discussão que fosse, porque não acompanhavam aquele raciocínio rápido, perspicaz e maduro de uma mulher precoce. Disfarçavam tal atitude fingindo desconsideração. Não havia forma, meio e nem condições para um compartilhar de quase nada que pudesse tornar o seu ambiente social agradável. 

Nem mesmo a música conseguia enquadrá-la no meio dos jovens de sua idade, pois preferia em geral aquelas que foram sucesso na juventude de seus pais. Cantarolava, dançava, sorria e vivia tempos idos, sonhando com o passado como se nele houvesse vivido, lembrando certas passagens de Wilde em "Dorian", ou Proust "Em Busca". 

O mesmo se dava em relação à sua família composta de seus pais, ela e seu gato, que considerava um ente muito querido naquela família. Ele, um siamês, desfrutava de suas confidências, de seus sentimentos mais íntimos com o seu olhar terno e, ao mesmo tempo, desconfiado. Considerava-o seu companheiro para todas as horas e não se podia tratá-lo como um bicho, pois para ela a compreensão recebida dele lhe tinha mais valor que a de seus próprios pais algumas vezes. Estes, nunca lhe falaram de Deus, porque também não O conheciam, embora conhecessem por alto uma religião oca e vazia como é o próprio ídolo.

Ninguém sabia se havia um amor em sua vida, embora se suspeitasse disto. Ficava fascinada, em alguns momentos, como aquelas mulheres que se encantam pelo boto ou são encantadas por ele. Quem seria o seu boto? Um sertanejo rude, daqueles criados pela imaginação poética de Guimarães Rosa, um intelectual, um poeta, ou o amálgama de todos eles juntos? Aquele gato, de certa forma, não representava o boto, confundindo-se com um homem? Eis que dormia em sua cama, roçava suas pernas, sentia seu cheiro a reclamava com as patas, unhando a porta do reservado, quando C. passava mais que o necessário fazendo sua higiene pessoal. O gato parecia sentir-se como aquele personagem kafquiano que não conseguia adentrar o Castelo, com a diferença da rebeldia demonstrada pelo felino. 

O interior de C., indevassável por um reles mortal, não tinha nenhuma abertura que pudesse deixar entrever algo no sentido da vida, muito menos sobre o amor. Houvesse uma demonstração mínima que fosse no estilo febril das mulheres romanceadas por Lawrence, ou de Emma Bovary, ainda seria possível entrar em sua quietude, mas isto era impossível, pois vivia consigo mesma, em sua solidão escura e como se não ligasse para nada mais ao seu redor. Sobretudo, partilhava do pessimismo de Schopenhouer, embora, paradoxalmente, se desfizesse em esperança noutros momentos. Parecia uma sertaneja rude à distância, mas de uma nobreza digna de reverência evidenciada em seu olhar, nos gestos, na fala, no andar de balanço estético. À semelhança de um vestido rústico sobre um corpo esbelto; um corpo rústico, como rústicas são todas as coisas essenciais, carregando uma alma sensível e delicada. 

Adorava os poetas que falassem fundo em seu ser por versos compostos como flores escassas. Declamava baixinho para o gato versos de amor; comunicava-lhe numa linguagem quase mística, esperando respostas de um felino interessado nas carícias de uma gata quase bicho quanto ele. A recíproca era verdadeira. Muitas vezes em sua imaginação fértil, via-no um homem, especialmente quando sentia a delicadeza estampada nas suas patas carinhosas: no roçar objetivo, no olhar penetrante, nas artimanhas masculinas da posse. Amava-o também com interesse de gata selvagem. E ambos se entendiam no silêncio de todas as horas, nas chuvas, nos ventos calmos, no calor, nas saudades, numa cumplicidade quase animal e poética.


Juscelino V. Mendes





Sobre a obra


Esse conto é uma homenagem à escritora cearense, Carmélia Aragão, quando, ainda adolescente, gostava de ler e afagar o seu siamês. Carmélia, em seu livro, "Eu vou esquecer você em Paris", Fortaleza: Imprece, 2006, faz referência a este conto no seu "Felis Catus".

Homenagem também à magnífica obra de Balthus e aos meus escritores favoritos.


Imagem: The Living Room - 1941/1943 (foto: http://photos1.blogger.com/img/286/2511/1024/balthus51.jpg


Um comentário:

Zel Florizel disse...

Mais um belo texto professor Juscelino, obrigado por compartilhar.